
A recente decisão do Governo do Piauí de "regulamentar" a cobrança pelo uso dos recursos hídricos, incluindo de poços tubulares, gera incertezas. Publicada no Diário Oficial em 15 de maio, a Resolução CERH nº 02/2025 institui tarifas sobre o uso da água em todo o estado, inclusive "recursos hídricos superficiais e subterrâneos".
O discurso oficial fala em “uso responsável” e “justiça no acesso”, mas, na prática, a medida escancara uma desconexão entre a tentativa de estabelecer uma gestão ambiental eficiente e a realidade de muitos piauienses.
De acordo com a nova regra, irrigantes pagarão R$ 0,005 por metro cúbico, enquanto indústrias e a construção civil desembolsarão R$ 0,50/m³. Para consumo humano, a tarifa varia entre R$ 0,05 e R$ 0,15/m³, dependendo da população atendida. A cobrança será feita, inicialmente, com base na autodeclaração via Sistema Integrado de Gestão Ambiental (SIGA).
A medida não é tão clara ao impor cobrança pelo uso da água subterrânea, aquela dos poços. No interior do Piauí, muitas famílias consomem água de poço perfurado com sacrifício em suas propriedades. São justamente as pessoas que, historicamente, foram esquecidas pelas políticas públicas de abastecimento.
Agora, além de não receberem água encanada e um abastecimento digno, esses moradores serão cobrados por viabilizar e captar a própria água. É como se o Estado dissesse: “não te fornecemos água, mas vamos cobrar por você encontrá-la”.
Embora existam isenções previstas para agricultores familiares, comunidades tradicionais, inscritos no CadÚnico, assentamentos e entes públicos, a regulamentação ainda é nebulosa. Quem vai garantir que pequenos produtores serão, de fato, contemplados por essas exceções? E o morador rural que perfurou um poço para uso doméstico, mas não está formalmente enquadrado em nenhuma dessas categorias?
O discurso de preservação ambiental, por mais importante que seja, não pode ser usado como escudo para medidas que ampliam desigualdades. O mesmo governo que pouco investiu em acesso à água potável agora cobra de quem se virou como pôde para garantir o próprio abastecimento.
O problema não está em cobrar pelo uso da água, algo previsto na Política Nacional de Recursos Hídricos. O problema impor uma cobrança com regras que abrem margem para dúvidas, sem critério justo, e em penalizar justamente quem mais sofreu com a ausência do Estado.
A cobrança deveria começar pelos grandes consumidores — agroindústria, grandes empreendimentos urbanos e setores historicamente privilegiados —, não pelo cidadão comum que tem poço no quintal porque nunca teve outra escolha. Ainda que o governo diga que esse "cidadão comum" não vai ser atingido com a cobrança, a regra deixa dúvidas e abre margem para desconfiança.
Distante do Palácio de Karnak, piauienses vivem esperando água barrenta em carro-pipa, sofrendo com a falta d’água por dias. No Piauí fora da propaganda, ainda existe desigualdade no acesso a esse direito tão básico.